SEIVA PEÇONHA

22:49

Apressada, Carolina corria risco iminente de tropeçar em seus próprios pés, no entanto ainda sentia que seu esforço era pequeno. Queria voar, esgotar as fibras tensas dos músculos e chegar depressa. Imploraria perdão, mesmo sabendo que não merecia, mesmo que cada molécula de seu corpo atestasse repulsa contra si mesma.
Desviou à esquerda, avançando pela via esburacada que normalmente evitava, mas atalhava. O tornozelo franzino logo envergou na calçada; ela perdeu o equilíbrio, enredando-se em um arbusto lenhoso cujas farpas lancetaram e feriram sua mão delicada e magra. Agora mancava. Os olhos queimavam à aproximação das lágrimas. O melhor amigo... Engoliu o choro. Ao passo que aligeirava as pernas e reduzia aos poucos a distância entre os dois sob o prelúdio de uma noite enluarada, sua mente ansiosa velejava.
Do mesmo modo que Bernardo, Carolina tivera uma infância opressiva e solitária. Um passado que ela queria deixar para trás, enterrado sob a pilha de tijolos de sua popularidade recém-construída; encontrara êxito social, meses antes, quando ingressou no ensino médio. Aprendera a se vestir com looks da moda, falar de forma descolada e, acima de tudo, explorar sua beleza. Já ele, seu companheiro de mazelas do fundamental, florescera pouco. Havia nele aquele breque engastado, que ela não entendia bem.
- Carol, sou HIV positivo – ele tomara coragem e confidenciara, certa vez, ao final da aula de biologia. Ficara claro que aquele segredo, desnudo na face turva do garoto e na forma introvertida com que encarava as meninas, frustrava sua plenitude. A contaminação ocorrera por transfusão sanguínea de emergência, na tenra idade, após um incidente grave na companhia do patinete conquistado pelo aniversário de sete anos. - Sou que nem aquela planta do livro, na lição de hoje... - tentara sorrir, suavizando o tom da revelação -, minha seiva é peçonhenta.
- Ai, Bê, nada a ver! – Carol o envolvera num abraço apertado, o mesmo que o fazia relaxar depois de uma sessão de provocações e insultos. A confidência não desbotava a simetria entre os dois. Longe disso, despertava nela um sentimento ardente de admiração. – Não tem nada de errado com o seu sangue!
Obviamente Carol não falava em nome de toda escola, e Bê entendia isso muito bem. A ideia de encarar a onda implacável de hostilidade na sala de aula o apavorava todos os dias. Ele não era o tipo popular e jamais seria. Não queria ser. Carol tinha outros planos. Não cogitava findar a antiga amizade, isso não, precisava de Bê para suportar a gama de futilidades enraizada em seu novo grupo de amigos, mas as coisas não seriam como antes. Esta parte ela detestava e, apesar disso, suportava. Os olhares interessados dos garotos mais bonitos e a enxurrada de inveja das garotas mais bonitas... Valia a pena.
Há cerca de um mês, Bernardo recusara o convite da amiga para participar do primeiro luau das férias, na praia.
- Todo o primeiro ano vai estar lá! - Carol o sacudira pelos ombros. - É a sua chance de se misturar.
Todavia Bê andava abatido e fazendo terapia. Não queria estar com pessoas que o maltrataram tanto. Carol compreendeu, no entanto sua nova turma exigia dela presença confirmada. Não gostava de admitir para Bernardo, mas sorvia sua nova e inspiradora onda de popularidade como quem saboreia o vinho em uma noite fria e quase sensual. A adolescência tinha dessas surpresas, supunha no íntimo.
Um mundo sem pais, professores, um mundo sem regras. O luau ganhou vida livre de supervisão.
O tópico sobre a sexualidade de Bê brotou sem demora. Carol deu de ombros, evasiva, como sempre fazia quando a falta de assunto envergava para a crítica e humilhação a algum aluno impopular. Bê era carta mercada. Carol sentia nojo daquela insistência; mas em vez demonstrar isso bebericava seu drinque cor de rosa e sorria. Naquela noite as colegas se aglomeraram feito abelhas em torno dela, exigindo a verdade. O enxame, estrategista, colocou-a em evidência, e a enigmática Carol se deleitou com o assédio e viu guindar ao ápice seu cartaz na hierarquia escolar. Em meio à fusão ilegal de vodca e energético, cedeu. Contou que Bê não fugia de garotas porque era gay, mas por medo, zelo. Era ajuizado demais para arriscar. De modo factual, numa tentativa subjetiva de responsabilidade, como quem se convence de que está apenas atuando no princípio da honestidade, até mesmo ajudando, ela revelou a verdadeira razão. Juramentou as amigas, supostamente comprometidas entre um soluçar etílico e outro, àquele segredo que a própria Carolina conhecera tão pouco tempo atrás.
Após a festa, foi visitar a avó no interior, aproveitar as férias como manda o figurino, segundo os pais, sem sinal de internet ou celular. Um mês. Carol fingira reprovar a ideia, como toda adolescente rebelde, porém viu tudo aquilo com sentimento de alívio, precisava fugir e dar um tempo de sua dupla personalidade. Só sentiria falta de Bernardo.

O retorno à cidade trouxe com ele devastação.
Começou nos grupos de mensagens; depois, redes sociais. Havia dezenas de montagens com a foto de Bê, uma mais perversa que a outra. A pior externava algum tipo de jogo de ligar figuras: havia o homem velho e peludo, a mulher nua em posição obscena e o frasco com seringas, como prováveis cenários de contaminação, e a face de Bê jazia no centro, cercada por chamativas interrogações verde limão.
Carol ligou, esperneou, passou o dia ao telefone implorando aos colegas. Em troca, embolsou risadinhas despreocupadas. Inconformada e com raiva, golpeou as portas das casas das amigas, contudo provou infâmia e desinteresse. Foi ameaçada. Não poderia confessar a ninguém que as garotas dominavam o segredo de Bernardo, porque a acusariam de volta e o menino confirmaria que Carolina fora a única pessoa a quem ele contara.
Sem chão, só pensava em Bê. Seu palpite sobre ele era dos piores.
Procurou uma área desabitada do parque da cidade, apoiou-se sobre os joelhos e expeliu um líquido amarelado pela boca. Enxugou os lábios finos com as costas das mãos e prendeu o cabelo louro. A sensação de impotência tomava seu peito. Como podiam ter feito isso? Bê nada fizera a elas! E não tinha nada a ver com sexualidade, havia três colegas na sala que eram gays e ninguém os importunava. Eles não permitiam... Bernardo era sensível. Uma presa fácil com a finalidade de alimentar o culto à vaidade. Será que ele já não sofrera o bastante?
Notou o paradoxo: parecia fundamental para ela continuar buscando as razões existentes por trás de atos tão abomináveis, quando, na realidade, encontrar tais razões só fazia agravar sua incompreensão e dor, uma vez que nenhuma conclusão justificaria tamanha crueldade. Precisava confortá-lo, nada mais importava.
A dor transportou-a de volta ao aqui e agora. Apertou o passo. Tinha obrigação de chegar a ele.
Da palma estropiada vertia sangue. Descuidou-se e sem querer ajeitou a franja suada, tingindo de vermelho uma mecha loura. Resfolegava e seus pulmões chiavam, quando alcançou a casa. Bateu. O eco veio em resposta. Socou a madeira até o trinco dobrar-se e a porta envergar e se escancarar violentamente. Ela não ligou e entrou. Subiu a escadaria correndo e foi direto ao quarto do melhor amigo. Vácuo. Na escrivaninha, onde Bê costumava riscar o papel secretamente, topou com uma folha couché reciclada. Estava desesperada. Foi ousada e leu:
É esquisito, quase profano, instigar o amor, aquele sentimento puro de que tanto falam, ao definhamento, à morte. Amor, onde nasce, por justiça, é clamado o belo, o régio celeste entre os sublimes atos de sentir, encorajado em sua forma primordial, altaneira, aconchegante, tal como um travesseiro de plumas sob as mentes abaladas e insólitas. Amor não deve ser colhido como estorvo ou maculado por borrifos sórdidos de mágoa. Um amor que vira mágoa é como a úlcera cruenta encravada no cerne da alma, é vício criminoso. E minha existência, em tal grau obscura, conjuga “amar” em tempos antagônicos, ofendendo a sanidade, zombando do instinto primevo de sobreviver, de erigir o amanhã fértil e permitir ascender da escuridão referta, aquela de feitio mórbido, nada mais que névoa perpétua, que faz sofrer, que esfola, feito lanceta em brasa. E rechaçar o impulso de amar? Oh, nada mais que abrigar a decepção. Apenas outra. E o flanco piedoso, esta face abstrata e pomposa, vive? Contesto, porque versa que as tais emoções mortificantes possuem requintes generosos, que abençoam o pobre espírito com uma pontada a mais de sapiência: “um coração partido amadurece a alma”, dizem. Tolice! Amar congela e reduz a alma a pó. Não pó mítico, brilhante, apenas fuligem. É doloroso consentir, porque o amor é o intrépido capaz de ofuscar a peçonha, o único qualificado a vestir-se inteiro com empatia. E salvar-me.
Largou o papel. Nunca o vira de forma tão visceral e jamais o compreendera tão profundamente. Amor vestido de empatia, subjugando a peçonha. Só o amor é capaz de ocultar o veneno em seu sangue.
Emocionada, ouviu um soluço que não era o dela. Do corredor, seguiu o murmurejar até outro quarto. A mãe de Bê estava de joelhos, apoiada ao pé da cama. Soluçava baixinho.
Carol a envolveu, entregando-lhe o abraço que esperava oferecer ao filho. A mulher ergueu a cabeça, sacudindo-a ligeiramente; tinha o ar inconformado e a face tumescida destruída pela dor.
- A depressão... – murmurou ela, sua voz sombria e entrecortada, incapaz de reprimir o pranto -, pensei que os comprimidos...
Carolina agarrou seus ombros.
- Melissa, por favor, o que houve? – implorou, sem ar. - Onde está o Bê?
- Convulsão à noite, overdose... – voltou a chorar, descompensada. – Não pude... Não puderam reanimá-lo.
Carol sentiu braços e pernas em torpor. Deixou-se cair, o desamparo e a agonia circulando em seu corpo, o elemento cabal de seu próprio ser.
Soltou Melissa e desabou por inteiro no assoalho do quarto.
- A natureza humana é vil! – gemeu ela entredentes, provando o gosto acre da culpa, a sombra da consciência a atormentá-la e a rasgá-la por dentro. Sofria e maldizia quem o torturara. A peçonha, pegajosa e fatal, não pertencia a Bê, e sim a ela, a fútil e vazia Carolina, e aos colegas bárbaros, ao coletivo algoz e julgador covarde.

Nos versos do amigo, lembrou-se do antídoto e rogou ao mundo, despedaçada e chorosa: um pingo a mais de empatia, por favor...

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