PURGAÇÃO

17:22


Em frente à porta, travei. Vira Gaspar pela última vez há mais de trinta anos e, desde então, buscava aplacar a dor e o caos que ele trouxera à minha vida. Não fosse a doença, jamais tentaria encontrá-lo. Soubera que a moléstia o consumira por dentro, como a fera homicida que arranha e esfola, que mutilara sua força de outrora, feito ácido em matéria orgânica, até restar nada além de um rascunho malfeito.
Eu previa o que espreitava atrás do batente ostentoso, que tinha viés de caixão e alçava minha ansiedade a patamares assustadores, contudo, não podia resignar-me à oportunidade do desabafo colérico e, desta forma, restituí-lo por todos aqueles anos severos. Ademais, meu discurso estava pronto. Sem volta. Aquele homem me extirpara o entusiasmo, ceifara vitórias que nem ao menos reivindiquei, renunciara aos filhos e tomara deles a infância eufórica e a formação plácida a que tinham direito. Fizera germinar em mim estigmas cruentos e, por isso, forçá-lo-ia a me ouvir, antes que caísse nos braços rijos do umbral e cerrasse seus olhos permanentemente nesta vida.
Toquei a maçaneta e meu estômago revoltou-se ao contato gélido. Lembrei-me da infância, quando meu pai, um cidadão culto para a época e região – década de 40, um vilarejo gaúcho chamado Josefina -, apresentou-me à instrução musical. Da primeira vez que provei as teclas do piano, antiguíssimas chaves amendoadas de carvalho maciço, meus dedos pueris experimentaram o efeito, quase catatônico, daquela maçaneta gelada. Fervor. Medo.
Recolhi o braço de forma abrupta, sentindo a pressão subir ao passo que recordava a forma vigarista com que Gaspar me impelira a deixar Josefina, meus pais e tudo o que me era íntimo. E depois, suas longas e negligentes ausências. O dinheiro era sazonal; o sustento dos rebentos, perene. Em pouco tempo, a mendicância forçosa execrou minha humilhação, convertendo-a em dever. Rotina. Eu padecia sob o olhar piedoso dos vizinhos, que acudiam na mesma proporção que julgavam, mas suportava e agradecia com os lábios da alma.
Gaspar fora hiato, uma lacuna volúvel em nossas vidas. Não estava lá quando a mais moça caiu de amores pelo amigo infante ou quando o moleque arranjou brigas estúpidas na rua para defender o meu nome. Quando soluçaram, se alegraram, ou se enfureceram pelo jeans da moda, que eu não podia comprar se quiséssemos jantar, e me alforriaram dias depois, precoces amadurecidos, pelo mesmo motivo. Pouco adiante, deixou-me pela jovem concubina - regalo das viagens - e a esfregou em minha face exaurida e rugosa, como se ela fosse um modelo aprimorado e mais digno do que seus três filhos e eu. As rugas não me envergonhavam, pelo contrário, cobria-me delas com orgulho; ele, sim, as repugnava. Ingrato!
Quando menina, minha casa ficava no Largo Comercial de Josefina. A dona do nome fora a desbravadora daquela terra, e, reza a lenda que, já no alto dos seus cinquenta e tantos anos, abriu estradas a facão, trazendo o progresso e meia-dúzia de filhos nos calcanhares, até se estabelecer naquele lugar e fundar a primeira comunidade rural ao sul das cidades desenvolvidas. Após enviuvar, de Josefina fora tirado tudo: casa, terras, animais para a lida do campo, até mesmo o sobrenome. Por isso ela se chamava Josefina e nada mais. Nos tempos sombrios, a ideologia desta mulher guerreira brilhara em minha consciência tal como um farol, um norte em meio à tempestade. Ela criara um novo mundo, para os filhos e para si mesma.
O clique do trinco fez meu coração retumbar em pânico, como se um cobertor fúnebre o envolvesse. Avancei resoluta e entrei. Mal o reconheci. Uma ossada, ainda com vida. O frêmito respiratório era perturbador, agitado, como se seus pulmões fatigados esperassem desejosamente por alguma coisa. O bipe cadenciado do monitor cardíaco remetia todo o meu drama a uma cena tétrica de algum seriado médico famoso. Senti minha traqueia vibrar, arder como nunca antes. Era o nó que trazia comigo, aquilo que precisava expelir, antes do final perpétuo. Como um predador que encurrala sua presa, eu o fitei; as palavras precisavam sair.
Aproximei-me do leito. Pálpebras se abriram, revelando olhos-marinhos de um tom cerúleo singular. As pupilas dilataram, indicando que me reconhecera. Ótimo. Preparei-me para abrir o garrote, expurgar o que me tolhia o nirvana, bem na cara dele. Raiva. Mágoa.
Descolei meus lábios, mas hesitei. Tornei a uni-los. Estaqueei por longos cinco minutos. Arquejei, quase sufoquei, e enfim compreendi a essência da transformação. Nada mudara. Tudo mudara. Não era eu. Era eu. Meu eu profundo, meu espírito falava.
Gaspar estava só. Só em seu leito de morte. Notei uma bandeja com nachos descansando na mesa de cabeceira, displicente, misturada aos utensílios de higiene pessoal. A acompanhante deve ter deixado aí, conjecturei, impedindo meu cérebro de acessar qualquer memória daquela mulher; e ocorreu-me, então, o quão sofrido devia ser para um corpo naquelas condições, interditado, proibido de se alimentar exceto por sondas, farejar o aroma picante e ouvir o crepitar da massa triangular, crocante, na boca alheia. Pareceu-me tortura.
Agora, via-o com pesar. E dor. O ar sintético, carregado em vapor farmacológico e queijo apimentado, faltou-me outra vez. Oportunamente, como que por mágica, um sopro de compreensão oxigenou o meu peito, uma compreensão que não era só minha, mas superior. Compreendi que a espiritualidade é diligente e sábia e brande a espada da misericórdia e a sacode em nossa direção na hora precisa. Meu discurso vingativo se desintegrou. Arrependi-me instantaneamente de tê-lo sequer planejado.
- Eu te perdoo – murmurei, tocando a testa em brasa.
Estupefato, ele sorriu. E chorou. A respiração aquietou-se e o bipe foi ficando lento.
Sinais vitais se perdiam no tempo, poéticos. Vi a mão trêmula se abrir e a agarrei; tendões esfiapados nos uniram. Tentou pronunciar algo, Cordélia..., meu nome. Não alcançou dicção. Gentilmente, afaguei sua face, explicando que não era preciso dizer nada. Os cerúleos se iluminaram, contemplando-me. Por meio de um suspiro, e creio que o mais vivaz de sua existência, o corpo quedou-se inerte. O alarme do monitor começou a urrar.
Deixei o aposento, irradiando a inspiração do puro amor em cada célula do meu corpo, enquanto a equipe médica corria e berrava ordens emergenciais. Qualquer medida, no entanto, seria inútil. Naquele sopro derradeiro, Gaspar deixara a carne. Testemunhei o alívio redentor, a regeneração espiritual. Fera indomada alguma habitava em minha garganta.

Eu estava livre. Nós dois estávamos.

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