O lugar de um gay negro
13:03
Se
há um episódio de minha vida do qual me arrependo é o de agredir fisicamente um
garoto no colegial. Eu fazia a oitava série. Tinha 12 anos. Era novato na
escola. E num corredor abarrotado de alunos fui chamado de “viadinho” e “bichinha”
por esse menino que naquele dia, naquele fim de aula, me perseguiu. No impulso,
reagi com um chute nas pernas. Ele foi ao chão, de onde me olhou incrédulo, levantou
às pressas e saiu correndo (de vergonha, creio).
O
corredor era enorme. Ligava o pátio à área de embarque e desembarque dos
estudantes. Nenhuma palavra saiu de minha boca. Nem para o garoto nem para a
coordenação pedagógica, a quem eu devia ter procurado antes de imaturamente
revidar a uma provocação igualmente imatura. Minha agressão fez aquela ofensa
parar? Sim. O tal menino aprendeu a lição? Não faço ideia. O chute impediu o garoto
de violentar outros gays? Não tenho como responder. Mas foi o que instintivamente
me ocorreu fazer diante de alguém me tachar de homossexual de forma tão pejorativa
- quando ser “viado” (ou “bicha”, como queiram) não é problema algum. Ou, pelo
menos, não deveria ser.
Aos
12 anos, eu não tinha esse pensamento. Sequer me enxergava como gay. Me via
apenas como...um menino de 12 anos, oras! Para outros, no entanto, agora fica
claro, eu era um menino negro de 12 anos com trejeitos femininos estudando num
colégio religioso de classe média-alta e massivamente frequentado por brancos
heterossexuais. Na minha sala, naquele ano de 1999, só eu e outros dois colegas
tínhamos pele escura. A turma era composta por 50 alunos. E eu era o único
afeminado dela.
Nunca
mais vi esse garoto. Sequer sei como se chama. Mas ele foi fundamental para, no
ano seguinte, eu conseguir me impor diante da acusação de roubo de um item da
lanchonete dessa mesma escola. A “tia da cantina” quem me apontou para a
coordenadora. “Foi aquele escurinho ali”. Ela me identificou não pela cor do
sapato. Não pelo modelo da mochila. Não por estar com o tal item – uma
cobertura de chocolate – em mãos. Foi por ser “o escurinho.”
Além
dos meus argumentos contra um racismo tão evidente, testemunhas me defenderam. Localizaram
o ladrão horas depois. Mas nem mesmo um pedido de desculpas a funcionária ou o
colégio se preocuparam em me dar. Pra que, né? Tão comum pensar ser sempre o
negro o gatuno (#ContémIronia). Papai também esbravejou ao saber do caso. Só
descansou quando foi à escola exigir uma retratação (que foi prometida e jamais
veio). Acabamos deixando de lado.
O
deboche do garoto e a acusação de roubo foram só duas das inúmeras situações
pelas quais passei por ser gay e negro. Nem conto mais quando estou na rua e
alguém se afasta por achar que vou tomar a bolsa e sair correndo. Nem quando me
olham torto por usar uma gíria LGBT num ambiente frequentado por héteros. Nem
quando entro numa loja chique e: ou os seguranças entram em alerta sempre me
rodeando ou os vendedores fazem cara de desdém, como quem pensa “o que esse pobretão
quer aqui?” (parênteses: em geral, nessa situação, faço questão de comprar o item
mais caro só pra passar na cara que com o meu dinheiro, ganho a custo de muito
trabalho digno, faço o que bem entendo).
Muito
menos dou importância quando duvidam da minha capacidade de fazer alguma coisa.
Porque sim: é senso comum se achar que lugar de negro e gay é escondido em
gueto de periferia sendo cabeleireiro, roubando ou se prostituindo. Tenho
orgulho da minha etnia e da minha sexualidade. Tanto que digo: meu lugar é onde
eu entender que o seja. No gueto, no salão de beleza, me prostituindo (essas
profissionais precisam ser respeitadas), na universidade (com ou sem cota), em
redação de jornal, na cadeira de deputado, na Lua, na Presidência da República!
Quem determina onde devo ir sou eu não o dedo e o preconceito dos outros.
Certa
vez, agora já homem crescido, ouvi de uma colega de trabalho: “Só por ser negro
e gay, Bruno, você vai ter de provar aos outros todo santo dia que tem
capacidade de fazer as coisas. As pessoas vão duvidar que você, preto e viado,
é tão capaz quanto um branco e hétero. Então, estude. Estude muito. Se
qualifique. Porque quando elas lhe provocarem você vai fazer o que sabe e vai calar
a boca delas da melhor forma.”
Pauline
estava certa. Está certa. A vida de um negro gay é exatamente essa: provar ser
capaz. Todo dia. O dia todo. Eu tenho verdadeiro pavor de vitimismo de qualquer
natureza. Entendo que diversas variáveis influenciam a vida de uma pessoa, mas
não aceito papel de vítima. Apenas avalio cenários e toco o barco pro que for
possível e pro que me satisfaça. Por isso, hoje, me sinto muito à vontade para
revidar sempre que alguém chama a homossexualidade de opção. Não é.
Quem,
em são espírito, optaria por ser algo que, pelos burros padrões sociais, é chamado
de “errado”, “nojento”, “pecado”, “imundo” e outros impropérios? Acho que
ninguém, né? Sexualidade é condição. Você nasce assim. Nasce gay. Nasce hétero.
Nasce LGBT. Pode até não se descobrir como tal logo cedo. Mas já nasceu assim.
Tanto quanto nasceu branco, negro, amarelo ou qualquer outra etnia. E a gente
não tem que aceitar um ao outro. Aceitar dá margem pra gente entender que o
outro está certo ou errado. E não existe isso de certo ou errado em sexualidade
e etnia. A gente, então, tem que respeitar. Esse é o verbo.
Antes
de qualquer coisa, a gente precisa URGENTEMENTE entender que todo mundo tem os
mesmos direitos que a gente. Todo mundo tem direito a ter direitos. Se eu,
branco heterossexual, posso entrar numa faculdade e sonhar com um futuro
promissor, um negro homossexual também pode. Por que não? Onde esse negro
homossexual concordou em ser inferiorizado? Por qual motivo você, branco
heterossexual, pode rebaixar um negro homossexual? Não pode. Você, branco
heterossexual, não é melhor do que ninguém. Simples assim. E garantir essa
igualdade implica numa série de políticas públicas de inclusão – definitivas ou
não (mas aí é outro papo, mais profundo).
De
tudo tudo tudo vivido até aqui (enquanto negro, gay e filho de família pobre
que suou um bocado pra me bancar uma boa educação), aprendi a não calar diante
de um preconceito. Nunca. Em situação nenhuma. Não importa se você está num debate
sério ou num carnaval de rua com amigos e alguém solta uma piada racista. Não
importa se o ataque é contra você ou contra um desconhecido. Coloque-se. Exija
respeito. Procure a Polícia ou qualquer outra esfera competente e denuncie. Sem se valer de violência, imponha-se. Violência só nivela os
desimportantes. E o silêncio é a arma mais poderosa de quem subjuga.
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